As coisas que restam – Por Vanessa Barbara

As coisas que restam  
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Aprender uma coreografia nova de sapateado que envolva pausas dramáticas e movimentos excêntricos com o calcanhar; passar a noite comendo sequilhos; ir ao cinema ver o mesmo filme pela quinta vez só para decorar as falas da voz em off; pesquisar sobre rastros de lesmas e recitar as informações obtidas para um desconhecido numa festa barulhenta; andar na rua como se fosse um enviado secreto do governo da Rússia, um pirata ou um viajante no tempo.

Às vezes perdemos coisas importantes na vida e um conjunto de lápis de cor é o que nos resta; a decisão de pintar as janelas; de nos concentrarmos em campeonatos de mímica; de bater coisas no liquidificador e olhar debaixo da cama só para ver se tem gente. Pessoas vão embora e, na partilha extrajudicial, ficamos com os restos.

O que geralmente nos resta é cantar músicas com os olhos fechados, chacoalhando a cabeça feito um Ray Charles; comprar o próprio peso em palavras cruzadas; praticar o pingue-pongue com estranhos num domingo à tarde e competir como se a vida dependesse disso. Resta é cuidar das plantas, cultivar tomates e manter na sala uma bola gigante de plástico; passar a noite no telhado examinando o céu e aguardando impacientemente a explosão da Eta Carinae; arrumar as gavetas; jogar fora coisas importantes; contar piadas ruins e aprender uma língua morta.

São coisas que nos salvam quando nada mais parece existir: ler um romance russo numa única madrugada e se afeiçoar ao mocinho; consertar um relógio de ponteiros; escrever uma carta; fingir que acabou a luz. Levar um tombo de bicicleta e se ralar inteiro; conversar com estátuas; convidar alguém para tomar chá com sucrilhos.

Resta girar muito rápido enquanto se dança e perder o equilíbrio; espirrar e perder o equilíbrio; dar risada e perder o equilíbrio; viver tropeçando; ter uma crise de soluços. Repetir o swing out até ficar com enjoo; fazer a segunda voz das músicas; fingir que a vida é um musical da Broadway e conversar com o taxista cantando; tomar sol com as tartarugas; vestir uma roupa excêntrica; atualizar as vacinas; correr para pegar o ônibus.

São coisas que nos restam: o vazio, a raiva e a tristeza, mas também os chinelos de pano, as pessoas que tocam tuba, as luzes coloridas, o sorvete de manga e os velhinhos ao sol. Restam-nos as noites de rockabilly, as crianças vestidas de Batman, as piscinas aquecidas, os amigos de infância e o centro histórico de Macau − isso sem falar numa barraca de rua que só vende pijamas de flanela.

Restam, enfim, o amarelo, o azul e o umami, os filmes tolos dos anos 40, as Olimpíadas, o vento, o suco de maçã. Amigos que gostam de mágica, astronomia, pôquer, carpintaria, triatlo, futebol americano e que estão sempre para operar o joelho. As lojas de R$1,99, os jardins, os telescópios e as viagens com escala em Dubai. Sair para comprar couve. Escolher um novo abajur.

O que, veja bem, não é pouco.

Fonte: Blog da Companhia (Companhia das Letras)

O texto "As coisas que restam" homenageia o cronista Paulo Mendes Campos. A autora escreve ao estilo de Paulo Mendes. Conheça  um dos textos do homenageado, retirado de seu livro, cujo nome é o mesmo: "O amor acaba".
O amor acaba - Texto de Paulo Mendes Campos

O que um ônibus faz por você



Não confie completamente em uma pessoa que nunca andou de ônibus. Não importa se hoje você tem um Camaro Amarelo e é "doce, doce. doce"; se você já andou de ônibus em alguma fase de sua vida, você não é a mesma pessoa. 
Digo mais: ainda que você tenha condições de comprar um Porsche para o seu filho quando ele fizer 18 anos, permita que ele passe ainda que poucos meses andando de ‘busão’. É que, para mim, este meio de transporte forma nosso caráter como chinelada nenhuma consegue fazer. Explico nos pontos seguintes.




1) Paciência
Tudo começa no processo de espera. Você se vê encostado na parada de ônibus esperando pela boa vontade do mesmo. Você até já decorou o horário que o “seu” ônibus passa. Mas se o motorista resolver pisar forte no acelerador e passar 3 minutos antes, só resta a você esperar mais 45 minutos pelo próximo.

2) Lidar com a humilhação
Vem ao longe o ônibus. Você reconhece no letreiro luminoso que é o SEU ônibus. Seu coração acelera. Você corre atrás dele como o Super Mario corre atrás da Princesa. Ele se aproxima e você percebe que o condutor não diminuiu a velocidade. Por algum motivo, o motorista passou direto com direito a um sorriso maroto, apontando para um suposto ônibus que vem atrás. Você fica com cara de tacho e a mão apontando para o nada.

3) Respeito às diferenças
Quando o “ônibus de trás” finalmente chega após 23 minutos, é claro que ele estará parcial ou totalmente lotado. Você se depara com um misto de sons e batuques, pessoas do Manassés pedindo doação, menino vendendo balinha e o cobrador com o humor pior do que o de um siri na lata. Você toca, ainda que não queira, pessoas que você jamais tocaria na zona de conforto de seu carro. Você é obrigado a lidar com gente diferente, sentar ao lado delas e até puxar assunto sobre “como o tempo hoje está quente”. Enfim: você deixa de lado seu ego e deixa de tanta frescura.

4) Altruísmo
Ainda que contra sua própria vontade, as Leis da Ética de Ônibus™ ‏dizem que você deve ceder seu lugar aos mais velhos e se oferecer para segurar os livros do estudante de ensino médio do cabelo esquisito que está em pé ao seu lado. Resumindo: você aprende NA MARRA a ser gente boa.

5) Capacidade cognitiva e filosófica
Janela de ônibus é praticamente a janela de sua alma. Não existe um lugar melhor para refletir sobre sua vida e colocar os pensamentos em ordem. Nem seu travesseiro; nem montes no Himalaia. Você acaba encontrando soluções para seus problemas, resolvendo cálculos complexos e tendo a ideia que faltou naquele brainstorm da reunião. Ou seja, de certa forma você se torna mais inteligente.

6) Educação
É no ônibus que você coloca em prática as palavras mágicas que sua mãe ensinou: “obrigado” (para o motorista, na hora de descer), “por favor” (a Deus, para que seu ônibus não demore tanto – todo dia peço isso a Ele) e principalmente o “COM LICENÇA” (por motivos óbvios). Ou seja: 1 ano de estágio probatório pegando ônibus e você se torna um gentleman ou uma lady.

7) Histórias para contar pros netos
Quem nunca passou por situações exóticas, engraçadas e inusitadas em ônibus? Quem nunca pegou o ônibus errado e foi parar em uma boca de fumo? (eu já!) Quem nunca ia descendo do ônibus e só na escadinha disse: “eita, esqueci de pagar! Perae moço!” (eu já) Quem nunca já sentou ao lado de uma senhora que foi com sua cara e resolveu te aconselhar com muita sabedoria? (eu já…)

 (FONTE : http://essetalmeioambiente.com/)