As coisas que restam
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Aprender uma coreografia nova de sapateado que envolva pausas
dramáticas e movimentos excêntricos com o calcanhar; passar a noite
comendo sequilhos; ir ao cinema ver o mesmo filme pela quinta vez só
para decorar as falas da voz em off; pesquisar sobre rastros de lesmas e
recitar as informações obtidas para um desconhecido numa festa
barulhenta; andar na rua como se fosse um enviado secreto do governo da
Rússia, um pirata ou um viajante no tempo.
Às vezes perdemos coisas importantes na vida e um conjunto de lápis
de cor é o que nos resta; a decisão de pintar as janelas; de nos
concentrarmos em campeonatos de mímica; de bater coisas no
liquidificador e olhar debaixo da cama só para ver se tem gente. Pessoas
vão embora e, na partilha extrajudicial, ficamos com os restos.
O que geralmente nos resta é cantar músicas com os olhos fechados,
chacoalhando a cabeça feito um Ray Charles; comprar o próprio peso em
palavras cruzadas; praticar o pingue-pongue com estranhos num domingo à
tarde e competir como se a vida dependesse disso. Resta é cuidar das
plantas, cultivar tomates e manter na sala uma bola gigante de plástico;
passar a noite no telhado examinando o céu e aguardando impacientemente
a explosão da Eta Carinae; arrumar as gavetas; jogar fora coisas
importantes; contar piadas ruins e aprender uma língua morta.
São coisas que nos salvam quando nada mais parece existir: ler um
romance russo numa única madrugada e se afeiçoar ao mocinho; consertar
um relógio de ponteiros; escrever uma carta; fingir que acabou a luz.
Levar um tombo de bicicleta e se ralar inteiro; conversar com estátuas;
convidar alguém para tomar chá com sucrilhos.
Resta girar muito rápido enquanto se dança e perder o equilíbrio;
espirrar e perder o equilíbrio; dar risada e perder o equilíbrio; viver
tropeçando; ter uma crise de soluços. Repetir o swing out até
ficar com enjoo; fazer a segunda voz das músicas; fingir que a vida é um
musical da Broadway e conversar com o taxista cantando; tomar sol com
as tartarugas; vestir uma roupa excêntrica; atualizar as vacinas; correr
para pegar o ônibus.
São coisas que nos restam: o vazio, a raiva e a tristeza, mas também
os chinelos de pano, as pessoas que tocam tuba, as luzes coloridas, o
sorvete de manga e os velhinhos ao sol. Restam-nos as noites de
rockabilly, as crianças vestidas de Batman, as piscinas aquecidas, os
amigos de infância e o centro histórico de Macau − isso sem falar numa
barraca de rua que só vende pijamas de flanela.
Restam, enfim, o amarelo, o azul e o umami, os filmes tolos dos anos
40, as Olimpíadas, o vento, o suco de maçã. Amigos que gostam de mágica,
astronomia, pôquer, carpintaria, triatlo, futebol americano e que estão
sempre para operar o joelho. As lojas de R$1,99, os jardins, os
telescópios e as viagens com escala em Dubai. Sair para comprar couve.
Escolher um novo abajur.
O que, veja bem, não é pouco.
Fonte: Blog da Companhia (Companhia das Letras)
Fonte: Blog da Companhia (Companhia das Letras)
O texto "As coisas que restam" homenageia o cronista Paulo Mendes Campos. A autora escreve ao estilo de Paulo Mendes. Conheça um dos textos do homenageado, retirado de seu livro, cujo nome é o mesmo: "O amor acaba".
O amor acaba - Texto de Paulo Mendes Campos